Escrevo essa carta de um novo café favorito aqui em Dubai. Um que - acreditem ou não - eu preciso pegar um táxi pra chegar, mas que eu acabo voltando e voltando, apesar da distância. Me sinto bem aqui.
Os últimos dias tem sido diferentes. Ainda não consigo entender completamente o que aconteceu nessa montanha-russa chamada vida. Uma pessoa importante na minha vida veio de me visitar e bem, quase nada saiu como planejado. Mas, também, sinto que de alguma maneira, tudo aconteceu exatamente como tinha que ter acontecido. Coisas da vida. Não podemos mudar as pessoas. Na verdade, nem deveríamos desejar isso. Pessoas não estão aqui para ser como queremos que elas sejam. Elas estão aqui para serem elas mesmas.
E eu conto isso porque o timing da vida é curioso e eu ainda não consigo compreender tudo como eu gostaria. Minha querida avó morreu em 2019, quando eu estava de férias do trabalho em Dubai e viajava com minha mãe e irmã em Londres. Ela foi hospitalizada e em seguida não resistiu. Foi um choque. Minha mãe pegou o primeiro voo de volta para o Brasil e eu fiquei em Londres com minha irmã - que estava fazendo seu mestrado lá. Isso aconteceu no primeiro dia de uma viagem de uma semana. No segundo dia, me vi em uma Londres chuvosa, fria e levando minha mãe para o aeroporto.
Me vi, também, triste e confusa. Não entendia bem a morte.
Isso me levou a ligar para o meu ex-namorado da época. Terminei a relação no meu último dia em Shanghai, antes de mudar para Dubai, cerca de dois meses e meio antes (e sim, já tive uma semana de férias logo em seguida). Não nos falamos nesse meio tempo e eu havia decidido seguir em frente com a minha vida. Ele havia traído minha confiança e não tinha condições de ter um relacionamento a distância com ele na época. Mas, eu fui embora triste. Me mudei para Dubai e tentei recomeçar a vida, mas meu coração ainda doía por alguém que estava do outro lado do mundo. Alguém que já havia demonstrado - mais de uma vez - que não podia me dar o que eu tanto procurava: um amor seguro. Era o que eu mais queria. É o que eu sempre quis.
Minha querida avó faleceu em um sábado. No domingo anterior, lembro de ter ido para a praia antes do trabalho (sim, em Dubai na época se trabalhava de domingo a quinta, uma prática normal em países islâmicos) e lembro de ter pedido pra Deus que ele me desse um sinal claro em 7 dias se ele era o homem pra mim. 5 dias depois, na sexta a noite, embarquei para Londres. Sábado, depois do ocorrido, liguei pra ele. Domingo, exatamente 7 dias depois da minha conversa com Deus, ele estava na porta do meu hotel em Londres.
Ele morava em Shanghai, onde nos conhecemos, mas exatamente no domingo que eu fiz minha oração (no exato horário segundo ele, quando contei isso tudo) ele conversou com sua família e decidiu ir para a Europa visitar sua família no final de semana seguinte. No sábado, quando eu liguei pra ele, ele estava na Bélgica, a poucas horas de Londres. Eu não sabia que ele estava na Europa. Ele não sabia que eu estava ou iria para Londres. Foi necessário um momento de extrema fragilidade para eu entrar em contato com ele, e em menos de 24h ele estava ali.
Um sinal claro. E assim, ele me consolou - claro que voltamos. Eu havia dado 7 dias para Deus me mostrar o caminho. E ele estava ali na minha frente no sétimo dia. O que é uma gigante plantação de red flags e histórico de traição comparado a isso tudo? Pessoas mudam. Evoluem. Eu acreditava no nosso amor - apesar de nunca ter sentido esse amor seguro que eu tanto procurava. Hoje, entendo que eu acreditava nos meus traumas e no único amor que eu tinha conhecido até ali. Um amor que não sabia cuidar. Um amor que abandonava, mesmo presente.
Perder a minha avó foi desafiador. A verdade é que a morte não estava realmente presente na minha vida. Perdi um tio querido quando pequena, mas não lembro muito bem disso, apesar do trauma. Foi um acidente de carro e descobri pela notícia na tv. Na época, não havia redes sociais e nem celular direito. Lembro do impacto e de não compreender bem a morte. Como era possível uma pessoa estar ali um dia e depois não estar mais?
Respirei fundo. Não veria minha avó novamente.
Minha querida avó tinha Alzheimer. Ela não me reconheci há algum tempo. Mas, sempre que eu a via, eu me apresentava, pegava em sua mão e sorria muito. Ela gostava do meu sorriso. Gosto de pensar que ela, bem no fundo, me reconhecia. Sangue reconhece sangue. Ela já estava frágil há muito tempo. Apesar do choque e da tristeza, parte de mim sentia paz em saber que ela não sofreria mais. Era hora de atravessar a ponte para o próximo lugar. Eu conseguia respeitar isso. Apesar de ainda não entender bem a morte.
Como assim não a veria de novo? Nunca mais?
Não acredito em erros do universo. Nem acredito em arrependimentos. Apenas, ensinamentos. Depois de um ano de relacionamento a distância e uma pandemia no meio, seguidos por 9 meses sem nos vermos, eu fui para Bélgica. Fiquei com ele e sua família por quase 3 meses. Vou poupar vocês de uma história longa e triste, mas terminei dois dias antes de voltar para o Brasil. Ele não havia mudado. E no meio do caminho, um coração ainda mais quebrado e completamente desnutrido. Por anos passei fome. De amor. De cuidado. De carinho. De segurança.
Naquela época, eu não só desejava isso. Eu realmente precisava daquilo.
Estranhamente, com ele eu aprendi o que é morte em vida. No nosso tempo junto, sinto que estava morrendo aos poucos. Minha alma estava se indo a cada lágrima, a cada mentira e a cada manipulação. Eu só terminei o relacionamento porque eu realmente já tinha sofrido o suficiente. E acredita, meu suficiente foi gigante. No aeroporto, eu olhei no fundo dos seus olhos e virei em direção ao meu portão. Eu não olhei pra trás. Eu sabia que não olharia para trás. Nunca mais falei com ele. Foi como se ele tivesse morrido. Ou melhor, foi como se eu tivesse morrido. Sendo sincera, a dor foi tão grande que eu achei que morreria. Talvez parte de mim tenha morrido mesmo.
A morte bateu na minha porta novamente no dia 01 de janeiro de 2022, quando um querido amigo mais jovem que eu se foi antes do tempo. Eu não falo sobre isso. Mas, sinto sua falta, meu amigo. Sempre sentirei sua falta.
E nesse domingo, a morte passou novamente pela minha vida. Perder o meu avô dessa vez foi mais calmo. Ele estava hospitalizado há semanas e os médicos haviam avisado do futuro eminente. De alguma maneira, essa preparação ajudou. Me preparou aos poucos para o inevitável. A digestão não precisou ser rápida. Pode ser aos poucos e a diferença foi gritante. Dessa vez, foi uma leve brisa. Apesar de que, eu ainda não sei se realmente entendo que nunca mais vou ver meu querido avô. Que eu nunca mais vou segurar na sua mão enrugada que de alguma maneira é tão parecida com a minha.
Olhei o meu celular, respirei fundo. Queria tanto o abraço de alguém que eu não falo há mais de um ano. Alguém que eu sinto e sei que não pode me dar o que eu quero. Exatamente da mesma maneira do passado. Respirei fundo. Não ligar e não mandar mensagem foi difícil. As vezes o coração quer o que o coração quer. Aprendi com a morta da minha avó e com meu ex namorado que minha fragilidade e luto não poderia ser uma porta aberta para o passado entrar. Principalmente para um passado que não cuidou. Que não foi gentil.
A vida é urgente e seguir em frente é necessário.
É um pouco estranho falar e pensar sobre a morte. Um grande tabu. Mas, ela é uma excelente mestra em nossas vidas. Nos fragiliza e também nos deixa humilde perante a vida. Nos mostra, de uma maneira estranha, o que e quem queremos. Nos lembra da urgência da vida. De que não temos nosso tempo aqui como garantido. E nos relembra da nossa força interna. De que a vida sempre segue em frente.
Com minha avó comecei a aprender o que era a morte agora como adulta. O susto, a fragilidade. Com um amigo querido, aprendi a ferro e fogo essa urgência e a responsabilidade de fazer algo com a vida. E com meu avô, aprendi a cuidar de mim mesma.
Uma geração inteira da minha família se foi. Ao pensar de que o dia chegará onde a morte virá buscar a próxima geração, a vida parece cruel. Mas, a vida está apenas sendo quem ela é. Um ciclo. Com começo, meio e fim. O meu dia também chegará. E, apesar de não ter a menor pressa, eu não sinto medo.
A morte representa pra mim muitas coisas. Um conjunto de sentimentos para os que ficam. Mas, uma ponte para os que vão. Quando uma porta se fecha, outra se abre. Eu sei que o me espera do outro lado. Mais vida. Mas, de outra maneira. Ciclos que se iniciam, se encerram, e se iniciam de novo.
E enquanto meu dia não chega, eu vivo. O máximo possível. Com os que estão aqui. Que um dia irão também. Cada dia conta. Cada dia é urgente. Cada abraço, potencialmente o último.
Não devemos ser zumbis andando pela vida. Não podemos.
Não temos esse luxo. A vida é urgente.
Que em cada abraço,
cada ligação,
cada toque,
você se lembre disso.
A vida é urgente. E ela está acontecendo aqui.
Agora.
Uau! Muito interessante essa carta e admiro a sua capacidade de cada vez mais mostrar as suas vulnerabilidades. O luto é realmente um processo que nos faz refletir e olhar pra vida de uma forma diferente, como uma wake up call. Gratidão Ana por compartilhar a sua experiência com algo tão sensível. Feliz que você voltou a escrever :)
Me identifiquei muito! A morte da minha avó remexeu e revirou tudo pra mim também. Obrigada por compartilhar.