040 | Construindo uma nova identidade (ou um pouco da minha história com meu corpo)
24 Março, Dubai 2023
Escrevo essa carta de um café que eu adoro, no maior shopping do mundo. Estamos em época de Ramadan e todos os cafés estão vazios, com poucos estrangeiros ocupando as mesas e deixando claro para todos: eu não sou muçulmano - inclusive eu. Mas, alguns hábitos são difíceis de vencer e eu escolhi uma mesa escondida no canto.
Um fato interessante é que ao andar até aqui, vi dois homens que estavam com a Kandora (roupa típica daqui) que estavam sentados em um café com um computador, mas sem nada na mesa. Entendi que é socialmente aceito ocupar um espaço num café sem consumir nada - já que simplesmente… não dá.
Sabe, hoje é um dia importante pra mim.
Hoje marca meu primeiro dia na academia, com um personal trainer e fazendo parte de um programa. Hoje não é segunda-feira. Hoje não é dia primeiro de um mês. Mas, hoje é um começo. De algo que era impensável para a Ana de alguns anos atrás.
Desde janeiro - na verdade desde que eu me mudei de volta para cá, em dezembro - eu comecei a focar na área da minha vida de saúde & movimento físico. Fui na academia fazer minhas sessões na bicicleta de cardio, caminhei muito e cuidei da minha alimentação (como dava). Fiz tudo que eu sempre fiz nos últimos 18 meses, mas isso deixou de ser suficiente - na verdade, eu cansei de brincar de academia.
Eu nunca levantei peso na minha vida. Não tenho a menor ideia do que as diferentes máquinas na academia fazem e essa falta de conhecimento começou a me incomodar. Percebi que eu queria aprender. Que eu queria levantar peso. Que eu queria sentir músculos que eu nem sei que tenho. Que eu queria moldar meu corpo.
Que eu queria me sentir forte, mais forte do que jamais me senti.
Essa mudança de paradigma está acontecendo de forma lenta. Há tempos atrás eu julgava quem ia para a academia. Não via exatamente como uma perda de tempo, mas não entendia o que levava um ser humano a ir para um local suar e "sofrer" levando peso. Minha identidade pessoal era muito fortificada em uma imagem pessoal de alguém com preguiça, que não tinha conhecimento - ou tempo - e com um corpo que não era tão "mal” assim. Levantar peso ou me exercitar não era uma necessidade urgente.
E assim os anos se passaram - por quase toda a minha vida até aqui.
Essa falta de consciência e atenção ao meu corpo (não apenas em sua aparência, mas principalmente no que ele era capaz de fazer) persistiu por toda minha vida. A vida de alguém que escolhia se movimentar era uma vida distante - muito distante mesmo - e também parecia ser sofrida, ou simplesmente, não estava disponível como realidade para “alguém como eu”.
Mas, com o tempo eu entendi que sofrimento é não se sentir bem sob sua própria pele e também de não saber e descobrir as maravilhas que o corpo pode conseguir fazer. Nas últimas semanas eu vi uma leve evolução no meu corpo. Talvez não tanto na aparência, mas eu comecei a me sentir diferente, mais capaz fisicamente. Perceber - pela primeira na minha vida! - uma evolução que foi resultado de uma decisão está mudando tudo. E como.
Minha consciência sobre isso está mudando, e hoje eu quero falar sobre isso.
Sabe, meu corpo já mudou muito com o tempo, mas nunca por escolha própria. Os meus 20 e poucos foram marcados pelo sobrepeso, descontrole alimentar e uma aparente auto-estima. Com 22 anos um médico me falou que meu peso naquele momento me traria problemas médicos no futuro e que eu precisava mudar. Tentei diferentes dietas, algumas aulas de jump, mas nunca consegui incorporar mudanças. Era tudo muito sofrido e no fim, nada mudou com o tempo. Eu comia o que eu queria (quase tudo super processado) e fugia de exercício a todo custo. Importante comentar que na época, minha busca pela perda de gordura tinha uma motivação que não era tanto (que eu lembre) focada na minha aparência. Meu foco era a saúde - e mesmo assim, não consegui.
Um fato engraçado foi o de que eu namorei por um tempo nessa época um menino que era body builder. Mesmo acima do peso, nunca me senti mal pelo meu corpo ao lado de um menino trincado e com corpo escultural. Na época, ainda tinha uma aparente auto-estima alta.
Com 25 anos, durante meus primeiros ataques de pânico, perdi quase 10 quilos em um mês. Com uma única mudança de hábito (parei de tomar coca-cola normal e adotei a coca-cola zero), nunca mais voltei ao peso antigo. Ao me ver cabendo em calças 40/42 eu me sentia melhor - tanto de aparência, quanto pela minha capacidade de subir escadas sem perder o fôlego. Taí uma coisa que eu não vou esquecer: quando eu percebi que eu conseguia subir escadas tranquilamente. Mas, com minha saúde mental tão fragilizada, a perda de peso não era algo que eu prestei muita atenção. A perda de gordura foi bem-vinda, mas o gosto de ter acontecido por eu não conseguir comer era amargo. Foi a consequência de algo que eu não tinha controle, não resultado de uma decisão pessoal.
Mas, a vida dá voltas.
Logo após minha perda de peso e com a saúde mental ainda fragilizada eu comecei um relacionamento que marcou muito minha vida. Hoje, entendo que sofria abusos psicológicos e emocionais profundos. Mesmo 10 quilos mais magra do que meus últimos anos, eu ouvia comentários velados sobre minha aparência.
Isso me confundia muito: eu estava bem mais magra que minha antiga versão, e de repente, eu não era mais suficiente?
Ao comentar que eu queria tomar um milkshake de sobremesa, levei como resposta: você tem certeza disso? - enquanto ele olhava para a minha barriga. Sempre que ele via fotos no Instagram de uma modelo (magérrima) ele dava um zoom na foto e falava que aquele corpo era lindo. Uma vez, ao ele me gravar dançando de moletom gigante e mini short (enquanto eu me sentia muito sexy), ele me mostrou a gravação, pausou, deu um zoom na minha perna, olhou pra minha celulite, olhou pra mim, tirou o zoom e continuou o vídeo. Sem dizer nada. Nem precisava. Mensagem recebida.
O abuso era constante, mas eu não percebia. Com o tempo, comecei a definhar e minha aparente auto-estima ruiu. Eu me sentia gorda, feia e simplesmente não era o suficiente. A vida é engraçada. Com um body builder do meu lado e 10 quilos a mais, eu me sentia gostosa. Com um menino magro e 10 quilos mais magra, eu me sentia uma baleia, pronta para matar ele com meu peso a qualquer momento.
Sabe, temos que ter muito cuidado com quem escolhemos em nossas vidas. Principalmente nossos parceiros. Entender e aceitar que eu sofri abuso e que isso danificou minha auto-estima e me levou a acreditar que eu meu corpo não era suficiente foi importante na minha jornada.
Dos meus 25 até meu término, todas as poucas vezes que eu entrava numa academia, era numa tentativa de tapar algum buraco: eu precisava mudar - para ser aceita, para ser amada. Isso feriu minha relação com meu corpo e me tirou completamente a autonomia de tentar incorporar isso na minha vida. A ideia de me exercitar e cuidar do meu corpo tinha uma motivação que vinha do medo, da escassez, não do amor por mim mesma. Não tinha como dar certo. E não deu.
Carreguei essa frustração com o meu corpo por mais de 2 anos, até que eu finalmente terminei esse relacionamento. Vou poupar vocês da história triste de outros abusos, mas ao terminar, eu entrei num período difícil da minha vida. Sou muito grata por não ter enfrentado ataques de pânico, mas a tristeza profunda tirou completamente meu apetite. E aí, se foram mais 7 quilos. Novamente, perdi peso não por escolha. Mas por consequência de algo difícil.
Ao me olhar no espelho, e ver muitos ossos e ver aquele corpo que ele achava lindo, de magreza, eu não conseguia sentir nada. Apenas tristeza. Será que eu finalmente seria boa o suficiente agora, que eu não tinha nem vontade de comer?
Os meses se passaram, a alegria começou a entrar timidamente de volta a minha vida, e alguns quilos voltaram para o meu corpo e deixei a fase dos ossos para trás. Caminhava e me alongava muito e eu me sentia bem no meu corpo. Me sentia flexível, capaz e leve.
E aí algo importante aconteceu.
Eu transei.
Transei com um homem que tinha um corpo escultural - um Deus grego, mas isso é outro papo - e ao me ver ali, com o meu próprio corpo diferente do que ele jamais tinha sido, eu gostei. Gostei muito. Do que eu vi e do que eu senti. Eu tinha pique, tinha energia e eu tinha mais agilidade do que nunca.
Foi um momento muito impactante pra mim. Eu não estava magérrima como já tinha achado que eu tinha que estar, mas eu estava em forma e me sentia forte. Ver meu corpo “performando” daquela maneira mudou minha vida.
Desde então, houveram muitos altos e baixos. Meu peso tem constantemente flutuado uns quatro quilos - algo que é bem impactante pra mim, já que 4 quilos no meu corpo são muito visíveis. E mais do que eu isso, eu sou capaz de sentir esse peso extra em mim, e ele é incômodo. Não porque ele me faz sentir que eu não sou boa o suficiente, mas porque eu sei o que é me sentir diferente disso.
Agora que eu sei o que é ter um corpo performa de certa maneira, qualquer outra coisa é diferente e eu sinto falta. Eu precisei ter esse corpo, mudar ele, mudar mais, pra finalmente entender o que eu me sinto confortável e o que eu quero pra mim.
Eu finalmente entendi - e senti - que eu posso ter o corpo que eu quiser. Que meu corpo não precisa ser apenas uma consequência de fatores, que ele pode ser uma escolha minha.
E eu escolho me sentir forte. Em um corpo capaz de coisas que eu ainda quero descobrir.
E não sei bem como colocar isso em palavras, mas isso tem mudado a minha vida. Porque não é uma escolha pelo medo ou pela escassez, pela vontade de provar meu valor e de ser aceita. É um escolha de amor, por mim mesma, pelo o que eu quero viver e pela vida que eu quero construir para mim.
Uma decisão que está vindo com os movimentos que me levarão a essa nova identidade que eu já estou construindo para mim. Porque sim, podemos construir novas identidades e abandonar identidades passadas que não nos servem mais.
Nessa nova identidade - que é uma realidade hoje para mim - eu gosto de ir na academia. Na verdade, eu sinto falta quando não vou. Meu corpo sente falta de se movimentar.
Sabe, talvez nosso corpo tenha sido feito para isso: movimento.
Nessa nova identidade, eu cuido de mim. Cuido do meu corpo, do que eu coloco dentro dele, das escolhas que eu faço. Nessa nova identidade, eu me sinto forte, capaz de levantar peso e com o tempo aumentar essa carga. Nessa nova identidade, descubro novos limites, me desafio e gosto disso.
Nessa nova identidade, escolho ser a melhor versão possível de mim.
E hoje, isso inclui movimento.
lots of it.
Amei a carta e me identifiquei bastante. Ps: apaixonada por essa música!