004 | Sobre ser internacionalista, pelo menos para mim
17 Abril, Dubai - Addis Ababa - Seoul 2022
Começo essa carta não de um café, mas de um voo saindo da Ethiopia rumo a Coreia do Sul.
É um privilégio viver a vida que tenho e já ter tantas memórias dos últimos anos. Acredito que todos sabem que eu fiz meu passaporte no primeiro ano da faculdade, e ver minha jornada até aqui é perceber que ela se tornou muito maior do que eu poderia ter sonhado. Eu ainda lembro claramente eu olhando para o mapa mundi na adolescência e desejando conhecer as mais diversas cidades que eu via. Lembro também da incerteza, já que eu não conhecia ninguém que tinha a vida que eu queria ter. Tudo parecia tão distante. Lembro também da emoção de pegar meu primeiro voo internacional com 20 anos.
Lembro de cada passo até aqui. Os bons e os difíceis.
Exponencial é uma palavra que começa a explicar a minha última década. E apesar de saber que há ainda muito mais a crescer, não posso deixar de me perguntar: como? quais cidades e aventuras ainda me esperam?
Minha reflexão sobre ser internacionalista começou antes mesmo de chegar no aeroporto, com uma mensagem que eu recebi durante o almoço, da minha antiga líder quando trabalhei na Expo 2020 em Dubai. Conversamos um pouco enquanto contava para minhas amigas que estavam na mesa sobre o dia que eu conheci ela. Por causa do nome dela (que hoje eu sei ser muito comum na região) eu achei que encontraria um homem de uns 50 anos. Chegando lá, uma mulher do Sri Lanka que nasceu exatamente no mesmo dia que eu. Jovem, que construiu uma carreira brilhante por 7 anos na Expo, e que ajudou a construir um dos maiores eventos do mundo. Lembrei das inúmeras memórias de reuniões que tivemos juntas, o quanto eu aprendi profissionalmente, mas também de maneira pessoal com ela.
Quantas conversas tivemos de ela me explicando o que era ser uma mulher muçulmana? Seus medos e também seus valores? Sobre ser uma mulher do imigrante do Sri Lanka, com pele mais escura, em um lugar como Dubai? Existem tantas camadas em diferentes sociedades que não temos ideia, e com ela, aprendi algumas. Entendi, também, o significado de uma família vigilante, e de uma mulher que sabe o que quer. Lembro de termos ido para um evento de dois dias em Abu Dhabi juntas a trabalho (que fica menos de 2h de carro!) e do pai dela se hospedando no mesmo hotel que o nosso. A vigia era constante, mas ela não parava de trabalhar, e honestamente, ela se tornou um ótimo exemplo na minha vida sobre resiliência e bom humor.
Em seguida, falei rapidamente com outra amiga que é metade Emirati e metade palestina. Ela merece uma carta só dela, mas estávamos falando de Nathy Peluso - uma cantora Argentina - e eu lembrei de muitos momentos quando trabalhávamos juntas em um projeto para o governo de Dubai. Até hoje rio do fato de termos trabalhado em um prédio onde somente eu e uma colega chinesa não éramos locais e não usávamos hijab ou shayla para trabalhar. Ela é sem dúvidas a pessoa mais eficiente e brilhante que eu conheço, e ela é uma mulher muçulmana. Ela me mostrou que uma profissional acima da média não precisa estar de terno e salto ou se moldar a qualquer padrão. Ela só precisa saber usar sua inteligência com estratégia e ter valores inegociáveis.
Durante o almoço com duas amigas brasileiras e um conhecido alemão, tirei algumas fotos usando minha câmera analógica e o menino não conseguia parar de perguntar sobre minha câmera. Ele não acreditava que minha câmera tinha sido produzido há cerca de 50 anos e nem que eu tinha sido capaz de comprar uma câmera japonesa usada na China. Não pude deixar de refletir um pouco sobre globalização e o fato inegável de que se algo existe, você definitivamente consegue comprar on-line na China, não importa o que for e de onde for.
Nós rimos enquanto explicávamos para ele as estratégias que brasileiros usam quando vão a um restaurante de comida liberada: roupa confortável, comer menos na refeição anterior e se preparar emocionalmente para dar prejuízo para o restaurante. Num primeiro momento pode parecer exagero, mas de onde eu vim, em restaurantes assim, todo mundo come mais que o normal. A ideia não é saciar a fome, a ideia é realmente comer até não aguentar mais. No caminho de volta, fiquei pensando o porquê disso. Ele comentou que não iria comer mais que o normal apenas porque poderia comer o que quisesse e fiquei me questionando se há alguma relação do nosso comportamento com o passado econômico do Brasil, onde muitas famílias passaram fome lá atrás (algo que ainda é realidade para muitos, importante lembrar). Seja como for, fiquei pensando o porquê desse comportamento comum - um quase “preciso aproveitar enquanto há comida” - que eu nunca havia questionado antes. Alguém tem alguma teoria sobre isso?
Depois de me despedir das minhas amigas, fui para o aeroporto. No caminho, olhei par as ruas que já se tornaram familiares e fiquei pensando sobre os últimos dias e de como coisas incríveis aconteceram, inclusive o começo dessa newsletter. Como não estou viajando de Emirates, meu voo sairia do terminal antigo do aeroporto de Dubai, que eu não conhecia. Foi uma surpresa entrar por aquelas portas e ver a grande diversidade de pessoas e etnias. Roupas típicas que eu raramente havia visto antes e muitas cores. Consegui identificar algumas roupas de regiões do Paquistão, mas sendo sincera, eu não tinha ideia da grande maioria. Notei que muitas mulheres estavam usando o Chador e Khimar, algo não tão comum em Dubai. Não pude deixar de notar que eu não vi outras pessoas que poderiam ser consideradas “brancas” e a sensação de estar entrando em novos territórios que isso me causou. Eu realmente me sentia como se não estivesse em Dubai. Pelo menos, não a Dubai que eu conhecia. Engraçado como que apenas dois dias atrás eu estava pensando como que eu achava que já tinha tido a experiência do Oriente Médio, mas que foi só quando fui para o interior dos Emirados Árabes Unidos e vi apenas mulheres completamente cobertas usando o Niqab, que eu percebi que tudo que eu já havia vivido em Dubai e Abu Dhabi era apenas a superfície de algo muito profundo.
Achei essa informação online, e apesar de não ter 100% de certeza se os desenhos são completamente fiéis a realidade (sem falar nas diferenças locais), acho que ele ajuda a contextualizar um pouco o que estou falando.
Resolvi então, ver quais os destinos dos voos que estavam partindo daquele terminal: Riyadh, Mangalore, Lahore, Sialkot, Ahmedabad, Addis Ababa, Kuwait, Jeddah, Mumbai, Nur-Sultan, Bahrain, Praga, Cairo, Manila, Kozhidoke, Singapore, Medina, Amritsar e Chennai.
Não pude deixar de pensar no estilo de vida das pessoas ao meu redor, que num primeiro olhar, parece muito distante do meu. Fiquei muito impressionada com os diferentes tecidos que eu vi, e os diferentes detalhes nas roupas que eu sei que tinham significado, dos quais eu não conhecia. Preciso comentar também que o número de mulheres era limitado e numa contagem rápida percebi um ratio de 8 homens para cada mulher que eu conseguia vir. Mulheres que, na sua grande maioria, cobriam seus cabelos.
No caminho para a imigração, sorri um pouco quando percebi que havia uma fila de espera separada para mulheres que usavam o Niqab (que cobre parte do rosto) - para que elas pudessem mostrar seu rosto na hora da identificação do passaporte em um ambiente sem homens. Algo tão óbvio, mas que apesar de já ter morado num país muçulmano, ainda fico surpresa ao ver que existe.
Enquanto esperava meu voo em direção a Addis Ababa, na Ethiopia, fiquei conversando por mensagem com um amigo de Kuwait, e ele estava me explicando que muitos árabes, há apenas 3/4 gerações atrás, ainda viviam em tribos e como isso ainda tem grandes repercussões na vida de todos - inclusive a dele. Há muitas traumas geracionais envolvendo guerras e conflitos armados, algo que para mim, como brasileira, ainda sinto dificuldade de me conectar num nível emocional profundo, já que é tão distante da maneira que eu cresci. Acredito que nós entendemos bem o significado de violência, mas não temos ideia do real conceito de invasão geográfica e guerra tribal.
Além disso, ao entrar no banheiro, dou de cara com o famoso “banheiro turco" - ou, como eu chamo, o banheiro no chão. Novamente, algo que merece uma carta só para isso, onde eu conto muitas histórias (algumas trágicas) de memórias na China que envolvem essa beleza. A mais marcante? Quanto em 2013 eu aprendi sobre a etiqueta de como usar esse banheiro, que naquele lugar, não tinha porta.
A minha jornada dos últimos anos me levou a conhecer pessoas do mundo inteiro e fazer amigos de muitos lugares. Aprendi tanto, e ainda aprendo. Mas parte de mim ainda se sente tão impressionada com as histórias de vida e de como há milhões de pessoas no planeta vivendo vidas completamente diferentes da minha. Costumes, sabores e histórias que se compararmos, pode parecer que são de planetas completamente diferentes.
Em seguida, ao entrar no avião pude ver com mais clareza as pessoas que estavam no mesmo voo. Novamente: tantas cores, tecidos e estilos de vida que eu nesse momento só posso imaginar e não saber de verdade. Do meu lado, tinha sentada uma mulher que parecia estar no seus 35 anos. Ela estava coberta com um Chador muito colorido, era negra e estava lendo o Quran em árabe. Acredito que muitos de nós quando pensamos em muçulmanos, ainda pensamos num estereótipo de pessoas com pele morena, mas ao meu redor percebi que a grande maioria das mulheres negras pareciam ser muçulmanas também, pela maneira que se vestiam e cobriam seus cabelos. Não pude deixar de sentir curiosidade: de onde será que ela era? Quais os aspectos mais específicos da cultura local dela? As cores e padrões de costura em seu Chador significam algo específico ou eram apenas escolhas de design?
Novamente, ao olhar para ela percebi que nossos mundos eram muito diferentes. O olhar dela era muito profundo, e senti de verdade que ela parecia alguém que já havia vivido e visto muito.
Ao chegarmos no aeroporto de Addis Ababa, mais uma vez uma onda de novas cores, tecidos e acessórios. Era lindo, incrível e eu só queria saber e entender mais. Muitos homens usavam acessórios na cabeça, alguns chapéus com estruturas muito específicas e meu Deus, muitos sapatos incríveis. Você já parou para pensar que muitas pessoas nesse planeta realmente usam no dia a dia sapatos dourados, com costuras incríveis e meio pontudos? Talvez o mais próximo seria pensar em algo como Aladdin, mas era muito mais rico que isso. Olhei para o meu tênis branco da Adidas e ri. Realmente, eu vivo numa sociedade com muitos padrões. Ri de novo. O sapato dourado brilhante era muito mais lindo, com personalidade e ainda parecia confortável.
Ao escrever essas palavras do avião e pronta para dormir o máximo que eu posso, fico imaginando quais portas irão se abrir nos próximos dias. Fico animada também com o que estou aprendendo. O vídeo de segurança da aeronave era em uma língua que eu completamente desconheço e o alfabeto é algo que eu nunca vi antes - aramaico, talvez?
Ainda não caiu a ficha que estou a caminho de Seoul, uma cidade que eu ainda não acredito que eu já chamei de lar e que conheço tão bem. Olho ao redor e vejo muitos coreanos e de maneira inexplicável, já me sinto em casa. Ao mesmo tempo, no caminho do banheiro, vejo um homem que esticou o cobertor da companhia aérea no chão e está rezando. Me vejo pensando que ele deveria pedir sua refeição antes do nascer do sol por causa do Ramadan. Que louco, novamente uma sensação de familiaridade.
Como pessoas e situações tão distintas já trazem familiaridade para mim? Como que hoje eu vivo essa vida onde eu sinto exatamente o que eu já sonhei tanto em sentir? Esse misto de memórias, experiências e curiosidade pela vastidão das possibilidades que podem vir?
Seja como for, eu mal posso esperar para chegar em Seoul, para me reconectar com amigos, trabalhar de cafés e só andar pelas ruas dessa cidade que tem grande parte do meu coração e que, de alguma maneira, também representam um lar para mim.
Ser internacionalista vai muito além de diplomas ou de cargos no LinkedIn. É sobre nos conectarmos com pessoas diferentes, culturas distintas das nossas e ainda sim ver o que há de comum: humanidade. Medos e coragens. Felicidades e tristezas. Traumas e cura. Ser internacionalista, para mim, é essa curiosidade de querer saber mais, conhecer mais e também ser mais. É, talvez, sobre viver mais e buscar entender de verdade o significado mais profundo da palavra tolerância.
Hoje, depois desse dia de tanto privilégio e alegria de ter tido contato com pessoas tão diferentes - algumas mais próximas de mim que outras - eu novamente só posso agradecer.
Há tanto a se conhecer e explorar.
E já ter acesso a 1% disso me faz querer ser melhor e me ajuda a realmente entender o quanto esse mundo é grande, e o quanto a gente pode ser também.
Que você sonhe grande.
Afinal,
limite é uma ilusão.
Essa carta foi tão inspiradora. Limite é uma ilusão
Ainda em choque com a perfeição que é essa carta 004🥲❤️